Galveias
é diferente em quase tudo. Um pequeno ponto no Alentejo que, em património, é
uma das freguesias mais ricas do País. Mais de 6500 hectares de território e
vários prédios em zonas nobres de Lisboa, recebidos por uma herança da família
Marques Ratão que, às vezes, parece maldita.
O silêncio
caracteriza o Alentejo, assim como o Alentejo caracteriza o silêncio. Ao lado
do edifício da Junta de Freguesia de Galveias, concelho de Ponte de Sor,
distrito de Portalegre, alguém ousava perturbar este pacto ancestral com um
riff de guitarra elétrica e uma bateria galopante. O som trovejava de uma
carrinha de caixa aberta, com as portas em igual modo. Logo à frente, uns
indivíduos em tronco nu, dentro do parque infantil, com um daqueles tapetes
sintéticos que amortece as quedas e não derrete ao sol. A música e a sua
coreografia de trabalho nem por sombras estavam em sincronia, embora ambos
produzissem timbres metálicos. Não tarda, estavam a chegar os emigrantes,
filhos da terra, junto com os filhos e os netos da diáspora, que em agosto
rejuvenescem a vila e enchem o parque infantil.
Na
vila de Galveias, na margem esquerda da ribeira do Sor, com o seu casario
baixo, emaranhado na encosta de uma colina cercada de vastidão, hoje é bem
capaz de haver mais casas do que habitantes. “Vende-se” é uma palavra comum nas
paredes. O abandono não foi elitista. Estão devolutos os casebres e as casas
senhoriais. Só que estas, em vez de “vende-se”, têm a mensagem inscrita em
várias camadas de pó, que já petrificou sobre os brasões de família.
Galveias
só é Galveias pela sua linhagem aristocrata. Se fosse pela endogenia frutícola,
ainda seria Vila Nova do Laranjal. Atualmente, são mais os velhos do que os
novos. Por entre os jovens que um dia a guerra colonial levou, os que
embarcaram na vaga migratória dos anos 60 e os que, ao longo do tempo, foram
tornando maiores as grandes cidades litorais, o metabolismo desertificador
nunca foi interrompido.
Há
outro dado estatístico, que em Galveias persiste. Sempre houve mais homens do
que mulheres, ainda que se tenha mantido incólume no tempo a tendência dos
homens morrerem mais depressa. É uma das heranças daqui. A outra, que faz desta
freguesia uma das mais ricas da Europa em património, é o legado de uma família
sem descendência.
UM
CASAMENTO, UM IMPÉRIO
No dia
13 de junho de 1876, os esquissos do futuro de Galveias começaram a
desenhar-se. Fundiram-se pela via do matrimónio duas grandes famílias, que
haviam de formar uma das maiores casas agrícolas de todo o Alentejo – e, por
consequência, do País –, casando filhos menores. Com a suprema autorização
papal, Maria Clementina Godinho de Campos deu a mão em casamento a Manuel
Marques Ratão. Na Igreja de São Lourenço, padroeiro de Galveias, casou-se o
destino desta vila.
Da
lógica das coisas, nasceu a Casa Agrícola Marques Ratão. Da lógica da vida,
nasceriam cinco filhos, obedecendo à lógica demográfica de Galveias: quatro
meninos, uma menina. Nasceram, pela ordem do tempo, João Godinho de Campos, Ana
de Jesus Godinho de Campos, Manuel Marques Ratão Júnior, José Godinho de Campos
Marques e Mário Godinho de Campos. À sua maneira, todos eles se tornaram filhos
insignes de Galveias, uma condição que os seus pais haviam tornado hereditária.
Todos lutaram pelo desenvolvimento da vila e dos seus conterrâneos de forma
altruísta, deixando obra feita para o usufruto dos cidadãos de Galveias, como
eles.
O
primogénito, que era um homem talhado para o campo e para lavoura, e o mais
novo dos irmãos, um homem do mundo – oficial da Marinha de Guerra e médico,
ligado à criação do Posto Hospitalar de Galveias –, morreriam cedo. Dos cinco,
foi Ana de Jesus quem teve vida mais longa e a triste sina de ver os pais e
três dos seus irmãos descer à terra. Por circunstâncias da vida e de têmpera,
foram Ana de Jesus e José Godinho de Campos Marques, os mais apegados ao lugar
onde nasceram, embora Manuel Marques Ratão Júnior, o irmão do meio, lhes
pedisse meças nesse amor. Dos cinco irmãos, aliás, não se conheceu outro, pois
nenhum casou e nenhum deixou descendência. José Godinho de Campos Marques seria
o último dos Marques Ratão. A sua derradeira vontade marcaria ad aeternum a vida
de Galveias, que se tornou legítima herdeira de uma riqueza incomensurável. A
Casa Agrícola Marques Ratão, que se consolidara num império, tem um património
que hoje vale muito acima de 50 milhões de euros.
Em
1956, Ana de Jesus Godinho de Campos, José Godinho de Campos Marques e Manuel
Marques Ratão Júnior, por influência da irmã, criaram a Fundação Maria
Clementina Godinho de Campos, em honra de sua mãe. Ratão Júnior, que faleceu
dois anos depois, foi o seu primeiro presidente, sendo D. Manuel Mendes Santos,
o então Arcebispo de Évora, o presidente do Conselho de Administração. Após a
morte de José Godinho de Campos Marques, que sucedeu o irmão na presidência da
fundação, a arquidiocese de Évora seria a sua administradora vitalícia.
Dizem
os de Galveias que partilharam quotidiano com os seus beneméritos que a palavra
é insuficiente para os definir. Muito antes de ser formalizada a fundação com o
nome da matriarca da família, já os Marques Ratão tinham feito muito pelo seu
berço. Ana de Jesus sempre foi reconhecida pela sua bondade e pelos seus gestos
de filantropia. Em 1951, foi ela a fundadora da Sopa dos Pobres, que roubou da
fome mais que uma geração de galveenses. Durante anos, serviu uma média de 70
refeições diárias, a idosos e crianças.
Foi
esta a primeira obra de vulto em Galveias. Mais do que a fome que matava,
oferecia um retrato fiel do que era o Alentejo de então. Para espanto sucessivo
dos galveenses, a Sopa dos Pobres mais não era que um aperitivo nas obras
públicas que aí vinham, sob o signo Marques Ratão, que era também o maior
assalariador das redondezas. Alguns anos depois, José Godinho de Campos Marques
pegou em 500 contos e entregou a empreitada para a construção do mercado
coberto da vila, inaugurado em 1953, o ano do milagre da luz elétrica em
Galveias, por obra e graça do mesmo patrono.
Em
1954 é inaugurado o Clube Marques Ratão Júnior e, em estreia absoluta naquele
reduto de Alentejo, a mais estrutural de todas as obras de qualquer localidade,
o posto escolar. O ensino do pensamento em pleno Estado Novo só podia ter duas
interpretações: ou os senhores de Galveias tinham perdido o juízo ou a vila se
tinha tornado num exemplo. Que se saiba, Galveias em si nunca foi condecorada.
Mas a família Marques Ratão repartiu cinco comendas, todas da Ordem de
Benemerência, pelos seus três descendentes derradeiros.
Não é
possível falar do posto escolar sem falar de um casal de professores, por quem
passaram gerações de galveenses, entre as quais um filho da terra, que se
tornou pródigo. A professora Arcângela Oliveira lembra-se muito bem do menino
Zé Luís. Foi ela quem lhe deu as primeiras lições de português.
O
menino é José Luís Peixoto, que na vila já tem nome de rua, que se tornou um
escritor universal e o mais famoso dos galveenses (ver entrevista). O seu
livro, cujo título é homónimo da sua terra, está guardado como um tesouro no
pensamento dos que lá vivem.
SOB O
SIGNO DE RATÃO
Em
1955, já tinham sido inaugurados o asilo, o dito Posto Hospitalar Dr. Mário
Godinho de Campos, e o chamado Bairro Económico, que consistia em 19 moradias
para os que trabalhavam para a Casa Agrícola Marques Ratão. No ano seguinte,
foi criada a Fundação Maria Clementina Godinho de Campos, com as valências
assistenciais, que ainda hoje tem (lar, posto hospitalar, centro de acamados,
centro de dia e apoio domiciliário).
Em
1958, inaugura-se o edifício da Junta de Freguesia de Galveias e morre Manuel
Marques Ratão Júnior. Em 1959, foi fundado o Patronato de Raparigas, em regime
de externato. Em 1960, com a diferença de um mês, dois acontecimentos ficaram
na História de Galveias: a inauguração da Cine-Esplanada de São José, que
atraiu à vila nomes grandes da rádio e do cinema, tendo Madalena Iglésias e
António Calvário como cabeças de cartaz. Um marco de urbanidade, mas nada que
se comparasse à inauguração de rede de abastecimento público de água. Um bem
que ainda hoje subsiste em Galveias, praticamente gratuito para a sua
população.
Em
1961, ficou acabado o Bairro para Pobres, um conjunto de 24 moradias, destinado
aos que em Galveias permaneciam herdeiros dessa condição. No ano seguinte,
faleceu Ana de Jesus, ficando José Godinho de Campo Marques como o herdeiro
único do legado da família. Em 1966, o eterno presidente da Junta de Freguesia
de Galveias, a troco de uma boa maquia em contos, instalou na vila o posto da
GNR. Sob a presidência de Campos Marques, foi igualmente criado o refeitório
escolar e o lagar, onde ainda hoje a população transforma em azeite a sua
azeitona. As ruas de Galveias foram pavimentadas, as igrejas, as capelas e
muitas casas foram recuperadas, construíram-se esgotos e vários edifícios
públicos, como os correios, jardins e zonas de lazer. O património de Marques
Ratão não parava de crescer.
E Galveias crescia com ele.
A
HERANÇA
Todas
as obras realizadas entre os anos 50 e 60 devem-se quase na totalidade à
família Marques Ratão, mas tinham em comum um benfeitor, que construiu nesta
vila a sua utopia, pagando-a sempre em dinheiro, sem meias-conversas, como era
seu apanágio. Toda a gente sabia que “o senhor comendador” era uma pessoa
simples, que se sentia bem entre o povo, não tinha tiques de novo-rico nem
artimanhas de velho-rico. Gostava muito de festas populares, de fogo de
artifício e da sua privacidade, que não tolerava a devassa. Que a sua imponência
escondia um coração de mel e que o seu aparente trato rude era um disfarce da
sua generosidade. Era um homem de trabalho, um humanista, temente a Deus e à
Igreja, uma pessoa séria, que vendia caro o sorriso, embora nunca poupasse
dinheiro e esforços para dotar Galveias de equipamentos e serviços públicos,
que em muitos lugares do País, eram ainda um tema no capítulo da mitologia, com
os sonhos rasurados a lápis azul.
Em
Galveias, ele dominava o curso da vida. A dado momento da sua, à medida que as
mortes dos irmãos o foram deixando só, era o administrador da casa Marques
Ratão, presidente da fundação criada pela família, presidente da Junta de
Freguesia de Galveias, presidente da assembleia-geral da Casa do Povo,
secretário da Santa Casa da Misericórdia, diretor do Clube Manuel Marques Ratão
Júnior, diretor da Sopa dos Pobres. E, convém acrescentar, entusiasta e mecenas
número um da Sociedade Filarmónica Galveense, à qual atribuiu um subsídio
vitalício. Estava em todos os cargos-chave das instituições galveenses por uma
simples razão: era ele a razão dessas instituições.
José
Godinho de Campos Marques morreu a 12 de junho de 1967, deixando todo o
património da família à freguesia de Galveias, sua herdeira universal, em
conjunto com a Fundação Maria Clementina Godinho de Campos. Para os herdeiros
do último dos Marques Ratão ficaram mais de 6500 hectares de terra produtiva,
da cortiça ao cultivo, gado, carros e alfaias agrícolas, e ainda quatro prédios
em Lisboa. Um na Avenida da Liberdade, morada de José Godinho de Campos Marques
na capital, outro na Visconde Valmor e mais dois na Travessa dos Remolares, ao
Cais do Sodré, todos a necessitar de recuperação.
Fernanda
Bacalhau, a atual presidente da Junta de Freguesia de Galveias, eleita pela
lista da CDU nas eleições intercalares de janeiro passado, pela renúncia de
mandato do anterior executivo socialista, admite que encontrou uma “montanha de
problemas, que decorrem de incorreções e opções de gestão que terão sido pouco
respeitadoras do testamento do seu benemérito”. A Junta de Freguesia é o
veículo de gestão do património, mas, diz, “é bom vincar que este pertence à
freguesia e não à Junta. As linhas de gestão desse património estão bem claras
no testamento. É como se fosse o nosso plano diretor”. A autarca já estava à
espera de muitos problemas. Mas confessa que “o volume da realidade era muito
maior” do que pensava. “O património edificado está num grau de degradação
significativo e muito preocupante, sem que a Junta de Freguesia tenha meios
próprios para os resolver. São necessários 30 a 40 milhões de euros para
reabilitar todo este património, em Évora, em Portalegre, em Lisboa e em
Galveias. E ainda assim não se resolviam todos os problemas.”
De
recordar que a Junta de Freguesia de Galveias, assim como a fundação, por via
da herança que as une, não têm autorização legal para alienar património. “Este
património tem potencial elevadíssimo, é preciso colocá-lo de novo ao serviço
dos galveenses.”
Uma
das grandes riquezas produtivas da região, a cortiça, só colhe rendimentos de
nove em nove anos. “Ao longo do tempo, não se conseguiu equilibrar os ciclos
produtivos, de modo a termos rendimentos mais constantes. É essencial devolver
a vida aos campos, pois há muitas herdades, património da freguesia, que estão
praticamente ao abandono”, acrescenta Fernanda Bacalhau. Os galveenses, a fazer
fé nas ditas eleições intercalares, estão pouco crentes no motor da sua
herança. Dos 1083 eleitores de Galveias, 49 por cento não votaram.
Nas
últimas décadas, nasceu em Galveias um pavilhão polidesportivo, a Casa da
Cultura funciona bem, o infantário continua ativo, a freguesia continua a
produzir o azeite Marques Ratão, o vinho Marques Ratão, os borregos Marques
Ratão – que a Junta vende, com os lucros a reverterem para a freguesia. Mas, os
problemas de que fala a sua presidente, tudo absorvem, sem que os legítimos
herdeiros dos Marques Ratão vejam isso traduzido na sua vida. A última grande
obra pública que nasceu em Galveias foi o complexo de piscinas e parque
aquático Oásis Parque, há 10 anos.
A
fundação, sob a gestão da arquidiocese de Évora, tem sabido manter e
desenvolver o seu legado. Mas as diferentes lideranças da Junta de Freguesia de
Galveias foram lentamente votando ao abandono muitas das herdades que lhe
pertencem, e aos galveenses. Há muitos campos desertos, sem gente que neles
trabalhe. Galveias é hoje uma espécie de latifúndio de si próprio, alternando a
gestão socialista com a comunista, exercendo como pode esta herança feudal. A
riqueza pode estar na herança de Galveias. Mas a pobreza está-lhe no sangue.
Talvez seja por isso que o silêncio caracteriza o Alentejo.
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